Senhor Efêndi
Aqui vai:
"
Não sei se repararam, ali em baixo, num dos espaços utilizados para exercer o inalienável direito do contraditório (bolas, onde isto já vai), houve um senhor, um tal de efêndi (quem será?) que de uma maneira muito jovial e ingénua afirmou, sorumbaticamente, que não tinha medo de nada. Sim, acredito que foi sincero, embora ele próprio não tenha ainda percebido o ridículo da sua afirmação. Não, não, é melhor lançar os dados sobre a mesa e justificar esta mensagem. Perante o convite da Carina, que muito me deixou lisonjeado, decidi exorcizar alguns dos fantasmas que assolam a minha a mente. E, que método melhor do que confrontar-me com as minhas próprias palavras. Por isso, afirmo perante vós que, quando lancei aquela infâmia estava a ser relativamente sincero, ou seja, a minha mente divide-se entre uma parte lúcida e racional, que se cristaliza em cinco minutos de inteligência diária, e uma outra parte, mais visível, quase déspota, de extravagância e exagero. Temo que tenha sido esta a pronunciar-se naquele comentário, recordo-vos, de que não tenho medo de nada.
É uma espécie de recalcamento, onde as minhas lembranças tenebrosas e infelizes são atiradas para um recanto escuro, cheio de aranhas e teias. Por vezes, a minha parte racional (que tem uma memória do diabo, gente) lembra-se de invadir esse espaço, juntamente com uma lanterna para alumiar as trevas e, com as aranhas e teias presas nas pupilas e cabelos, traz também alguma matéria mais sinistra consigo. Foi por isso que hoje de manhã dei de caras com o seguinte diálogo, entre a minha razão e a extravagância.
(então, foste dizer que não tens medo de nada?)
(e não é verdade? Porque dizes isso)
(não, não é, olha só o que eu trouxe do quarto dos segredos)
E lá está, hoje de manhã vi-me perante a terrível situação de ver a razão agitar nas mãos o meu terrível medo das alturas. Sim, é verdade, eu tenho um abominável medo das alturas. Descobri-o quando, depois das aulas decidi ir com os meus colegas de escola passear para um centro comercial do Porto artilhado com uma insípida bacia de gelo onde graúdos e petizes mergulhavam no chão como folhas lançando-se das árvores em pleno Outono. Decidimos subir de elevador para o terceiro piso e, só aí, quando me vi perante uma abominável, confrangedora distância entre os meus pés e o chão, senti que o meu futuro não passaria pelo terceiro esquadrão da força aérea. Eu, lá à frente, no elevador, sentindo as pernas a tremer e as pálpebras, num movimento lancinante e doloroso, aproximando-se e afastando-se do chão, num movimento estonteante, tipo yo-yo, abri os braços e fingi ser um tipo calmo e educado. Disse:
(rapazes, acho que já vi o suficiente. Ainda há bocado pareceu-me que um rapaz, que patinava de costas foi mesmo de encontro a uma senhora que estava estática. Confirmem.)
(deixa ver, deixa ver, não vejo nada)
E com esta precisão de pássaro escapuli bem cá para trás no elevador. Finalmente, só no fim da viagem, breve, mas que me pareceu uma eternidade, consegui recuperar uma espécie de singela normalidade.
Também numa viagem a Madrid vi-me perturbado por este súbito pânico. Dentro de um parque de diversões (sim, aonde é que eu me fui meter) vi-me metido num embaraço que quase me custou a serenidade. Comecei dentro de uma montanha russa (como foi possível, perguntam vocês). É verdade, mas sabem como são os jovens, sempre a quererem demonstrar que não têm medo de nada. Porque é que eu haveria de ser diferente? Espicaçado pelo meu primo (não és homem não és nada se não vieres comigo) decidi colocar os meus delicados pés e a minha vida, porque não, dentro de uma daquelas abomináveis caixas que nos prendem. Mas, não é por nada que me chamo efêndi, e delineei o mais brilhante plano para suportar eficazmente o infame trajecto. Sem mais, prendi os braços ao suporte de ferro e fechei os olhos, tendo-os apenas aberto no final dos três, quatro minutos que durou a travessia do inferno. Sempre vos digo que pareceu uma eternidade. No final, lembro-me de ter descido da caixa com a convicção de missão cumprida. Só me lembrava de uns leves safanões, mas nada de especial. Pior foi quando o meu tio chegou ao pé de nós com um testemunho da minha sôfrega vergonha: uma fotografia, tirada no auge da emoção, onde eu estava com os olhos completamente cerrados e uns ligeiros trejeitos de terror espalhados pelo rosto. (ainda a tenho por aqui, mas obviamente que não a mostro em público. Está fechada num cofre inviolável, inacessível às más intenções da minha irmã). Mas, o pior ainda estava para vir. Não sei se alguma vez viram nas feiras populares uma máquina que nos eleva ao céu, num movimento perfeitamente vertical, e que depois nos larga rumo aos destroços das pessoas. Pois, eu na minha reconhecida ingenuidade pensei: (bem, para fim de festa, não custa nada pôr-me nisto. Não parece ter mais de cem metros, sim, não parece difícil). Engano, meus amigos. Este brinquedo é do mais cruel que existe no mundo. A viagem prolonga-se durante uns eternos segundos, parece que estamos a caminhar lentamente para o tormento da guilhotina. No céu a cidade não parece bonita ou outra coisa qualquer, mas sinistra, malvada, onde lá em baixo as pessoas agitam as suas asas de abutre à espera dos destroços do meu corpo. Bem, por fim imobilizado, no fim do movimento ascendente, o meu rosto contraiu-se, as pálpebras saltaram das órbitas, o meu cabelo esvoaçou. Só não esbracejei porque estava presa ao espaldar da cadeira. O pior foi quando retiraram o mecanismo que nos suportava. Parece que ficou um pouco de mim lá em cima, a ingenuidade, a vontade de me meter em mais aventuras deste género. Quando me senti no chão, as minhas pernas fraquejaram, girei à volta de mim próprio, não me consegui agarrar a uma barra de ferro e quando dei por mim, tinha caído um metro rumo ao lago dos patos:
(queck, queck)"
efêndi
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