sexta-feira, dezembro 10, 2004

Mais um

Deliciem-se com mais um texto do efêndi:

"Caros companheiros, escrevo-vos sentindo uma dor pungente nas minhas costas. A razão é simples: acabo de me chicotear, sem cerimónias ou qualquer tipo de hesitação, porque decidi cometer a ignomínia de reler o meu texto precedente. Eu sabia que não o devia ter feito, eu nunca releio os meus textos. Quando o faço mergulho logo num obscuro poço de depressão. Faz-me mal, definitivamente. E a razão para este meu lúgubre tormento é esta: mal iniciei a leitura interrompi-a logo nas primeiras linhas, tudo por causa desta miserável contradição: muito jovial e ingénuo afirmou, sorumbaticamente. Mas o que é isto? Como é que eu pude prosseguir o texto sem me aperceber que estas duas ideias se anulam mutuamente? Se estivesse na escola, a minha professora de português diria logo: “então efêndi, meu lindo menino, prodígio que me colocaram nas mãos, a quem eu devo mostrar a safra dos melhores poetas eróticos portugueses, como pudeste tu cometer tão trôpego erro?” E foi por isto, amigos, que hoje de tarde decidi pegar numa chibata e fustigar nas minhas costas a imagem de um cárcere. Mas entretanto, e porque a vida continua, veio-me à ideia tentar descortinar coisas que se contradizem, género: a minha mãe, ao mesmo tempo que prepara o meu lanche para o recreio da escola, descreve-me como um feio, bonito. A argumentação é esta: “meu menino efêndi, tu tens o rosto mais bonito do mundo. Os teus cabelos parece que descendem de um belo deus grego, esses olhos azuis assemelham-se a uma janela para o céu, o teu nariz, anguloso, possui a sobriedade de um marinheiro português, os teus lábios, escarlates, envolvem os dentes mais alvos que eu vi em toda a minha vida. É pena nunca dizeres nada de jeito, nunca ouvi uma palavra inteligente escapar por esse rosto. É pena, por isso é que eu digo que tu és um feio, bonito”. (ahh, pensavam vocês que eu me ia auto-flagiar dizendo que era enormemente feio fisicamente. Não, não, temos que ser sinceros. Somente a minha mãe desconhece a sóbria inteligência que habita em mim). E a partir disto, decidi tentar encontrar algo que também se ajustasse a esta perspectiva. Cheguei a esta margem: Merche Romero. Quando ontem a vi no Preço Certo veio-me logo à ideia uma comparação descomunal, ou seja, ao mesmo tempo que a olhava no ecrã, parecia que o meu mundo tinha retrocedido uns séculos e caído numa festa aristocrática em que a própria Merche fazia o papel de bobo do rei. Tudo isto, não porque ela estivesse a dizer muitos disparates (não vou por aí, gente), mas sim por causa da sua indumentária absolutamente original (ou então sou eu que não saio muitas vezes de casa). Resumindo, era assim: vestida de negro (bolas, para ser um bobo real tinha que estar mais colorida, é verdade), utilizava umas botas compridas, por cima das calças até aos joelhos, e depois destes, habitava em cada uma das suas belas coxas um enorme balão, retraindo-se no momento em que alcançara a cintura. E foi por isto, senhores, graças à Merche que me imaginei a mim, efêndi, a prestar vassalagem às princesas ou a prosseguir as minhas conversas inteligentes: “oh Gil Vicente, tens a certeza que queres pôr obtuso e filho de uma peste bexigosa na descrição do Santana Lopes?”

e ainda dizem que a televisão não é uma caixinha de surpresas!"
efêndi