quinta-feira, abril 27, 2006

Viagem de Comboio

Acorda com outro pesadelo.
Não são recorrentes, mas sempre com a mesma personagem. Lembra-se do que o Take lhe disse um dia sobre pesadelos e sorri.
Que personagem estranha, o Take.

Bebe o café apressadamente para tentar evitar a companheira de quarto que acaba de se enfiar no duche. Tem exactamente 10 minutos para o beber, pegar na mala e sair.
Tem de sair mais cedo, o carro está na oficina.
Há muito tempo que não apanho um comboio.

A estação permanece na mesma desde a última vez que se lembra. Sempre preferiu o comboio em alternativa ao autocarro. Em parte porque a deixam fumar. Mesmo em viagens de 15 minutos, é confortante saber que temos liberdade para acender um cigarro.
São 4 paragens até ao destino. A manhã está fria e o recente verde da Primavera sobressai por entre a neblina e um céu cinzento preguiçoso.
O comboio está praticamente vazio e repara que os bilhetes agora saem automaticamente de um aparelho electrónico.
Fica um pouco desiludida por não ouvir o estalido do picador e por não rever os velhos bilhetes de cartão, que tinham cores diferentes conforme se era ida e volta, regional ou intercidades.
Verde, laranja e azul.

Chega finalmente ao destino e repara ser a única a sair naquela estação.
Passa pelas casas de banho típicas, das quais se lembrava tão bem, deixadas ao abandono e ao esquecimento.
Homens e Senhoras.

Há um cheiro estranho no ar. Uma mistura de terra molhada pela humidade matinal com caramelos de morango.
No meu tempo os caramelos de morango sabiam melhor.

Caminha em passos lentos, a tentar adiar o inevitável. Já não sentia nervosismo, a calma surgiu-lhe após a resignação. Não era medo o sentimento que lhe atrasava o passo, mas sim o hipnotismo que aquela paisagem provocava.
Um ou outro raio de sol furava agora aquele muro de massa cinzenta e deixava avivar as cores dos campos. O cheiro era cada vez mais familiar e confundia-se agora com o aroma verde dos brincos-de-princesa que floresciam num quintal ali perto.
Que pena, de carro não consigo apreciar nada disto.

Eís que lhe surge o portão.
Verde, metálico, com pequenos espigões no topo para dissuadir quem o planeasse saltar.
Procura com o olhar o botão da campainha, mas o portão abre-se diante de si.
Hesita por segundos e entra decididamente.
Está na hora.

D. Tina rega os seus brincos-de princesa. Pensa que o dia está a pôr-se bonito e que será um bom dia para ir à cidade.
Um pequeno estrondo fá-la deixar cair a mangueira. O pequeno tubo de plástico contorce-se a esguichar água como se de uma cobra a lutar pela sobrevivência se tratasse.
D. Tina benze-se, como quem tem o gesto mecanizado e domina a cobra moribunda.
Este ano os meus brincos-de-princesa brotaram como nunca.