quarta-feira, setembro 10, 2003

Ontem, de madrugada, precisei de reler Al Berto. Leio-o aleatoriamente, pego num dos livros e abro uma página para ver o que ele me reservou.
As palavras que Al Berto me ofereceu ontem foram estas, do Anjo Mudo..

Sombras

Os vivos já não nos fazem companhia. Temos de escolher entre o pior e o pior. Estamos sós, amamo-nos num balbuciar de palavras sem sentido. Falamos, baixinho, de ausências e obsessões -- das nossas, e das dos outros que a voragem do tempo engoliu.
Os rostos e os corpos turvam-se. Uma cinza incandescente flutua ao fecharmos as pálpebras. Surge o poema -- e, com ele, todas as grandes verdades sobre a vida e a morte. Sabemos que já foram ditas e reditas. Mas, apesar de sabermos isso, cada um de nós possuirá a sua própria verdade, ignorando sempre a dos outros.
Repeti-la-à até à exaustão, até sentir a voz rouca, gasta. Subitamente, percebemos que não existe verdade nenhuma. Apenas dúvida.

Fumamos, então, o último cigarro, de luz apagada, deitados. «Amanhã, não acordaremos», penso. E, enquanto penso, surge-nos um rosto longínquo. Mas não conseguimos mais dizer-lhe aquilo que nunca ousámos, sequer, segredar. Não nos é possível amá-lo, outra vez, com as mãos.
O coração bate, desordenado. No escuro fumamos o último cigarro, desejamos morrer.